Eu sou escritor de ficção folclórica, mas é muito difícil para um escritor viver um momento como estamos vivendo e não escrever sobre ele.
Este não é um post político-partidário (apesar de vivermos um tempo tão polarizado, em que conseguimos enxergar um ataque a nossa preferência partidária em tudo). Este post é um desabado de um escritor, pai, filho, educador e cidadão que tem, por força do trabalho, acompanhado a evolução dos casos de Covid na própria cidade, desde o início da Pandemia.
Vou apresentar os números da minha cidade, que graças a Deus não está entre as piores do país (o que não nos faz estarmos nem perto de bem) e, desejo que eles te ajudem a olhar para sua própria cidade.
Números, números e números
Minha primeira formação é na área de exatas, por isso acabou sendo natural que, durante a Pandemia, eu me propusesse a acompanhar e plotar gráficos sobre os casos de Covid na minha cidade.
Aqui tivemos o primeiro caso registrado em 24 de março de 2020 e a Secretaria de Saúde passou a emitir boletins diários informando o total de casos e óbitos. A primeira morte de um morador da cidade veio em 30 de março.
No início os números subiam timidamente, se é que qualquer vida ceifada pode se considerar um número tímido. Essa lentidão talvez se devesse ao medo das pessoas que estocavam um número absurdo de papel higiênico e litros de álcool em gel.
Entretanto, já em maio os casos registrados passaram a ser mais de 10 por dia e, apenas neste mês, registramos 36 mortes, das 54 no total até aquele momento.
Em meio a esse aumento, já se falava em toda parte do país na retomada da economia, e este discurso tomou uma proporção tão estranha que, em certo momento, pareceu que só tinhamos uma escolha: morrer de fome ou deixar o vírus se espalhar. Não quero entrar nas medidas econômicas e sociais que poderiam ser adotadas, porque, como já disse no início, não quero que este seja um post “político”.
Como, para a maior parte de nós, os números são frios, logo o crescimento de casos e de mortes tornou-se apenas uma estatística como tantas outras que já nos acostumamos a ver. O medo, para muitas pessoas, passou. Outras, dentro da escolha impossível entre enfrentar o vírus e morrer de fome, tiveram que sair cada vez mais.
Toda a nossa falta de preparação social ficou escancarada: transportes lotados, prédios sem ventilação e todas as coisas que faziam o vírus “viralizar”.
Aqui na cidade, em agosto, chegamos no pior mês com 1461 casos registrados em seus 30 dias.
Tendência
Todos estavam emocionalmente exaustos. Sair, com toda a pressão de enfrentar o vírus, ou ficar em casa, confinado por tanto tempo, era demais para qualquer pessoa. O teletrabalho, muitas vezes sem condições estruturais, tornou a jornada de trabalho em dias sem fim, contribuindo ainda mais para esse cansaço.
Em meio a todo esse cenário, muitos de nós passaram a sair, despretensiosamente, durante os feriados. Festas começaram a aparecer aqui e ali.
Aqui quero deixar claro que eu não faço julgamento, nem de quem manteve o distanciamento, nem de quem resolveu “arejar às ideias”. Cada um sabe a dor de lidar com suas próprias escolhas.
E, como eu estava acompanhando os números da cidade, pude perceber uma tendência: entre uma e duas semanas após os feriados o número de casos subia, criando um novo pico.
Essa tendência se mostrava real a cada feriado.
Aqui no trabalho, alguns de nós ficamos preocupados com as festas de fim de ano. Afinal, na maioria dos feriados as pessoas vão para lugares, passeiam, mas nas festas de fim de ano, culturalmente, nós nos reunimos com nossas famílias.
A preocupação, infelizmente, mostrou-se verdadeira.
O fim de 2020
O final de 2020 mostrou, de fato, como estávamos exaustos. Muitas pessoas que eu conheço, que eram ferrenhas defensoras do isolamento social, não resistiram e participaram ativamente de festas e confraternizações de final de ano.
De verdade, não é fácil se manter isolado. Tanto que nossa legislação reconhece como os dois maiores bens de um ser humano a vida e a liberdade.
Aqui, encerramos 2020 com os números funestos:
– 283 dias transcorridos desde o primeiro caso registrado;
– 8.265 casos;
– 288 mortes.
A Covid chegou em 2021
Esses números em grande parte são o motivo de eu escrever.
Não sei se nos iludimos, acreditando que havia um tipo de relógio mágico que faria com que o vírus perdesse sua força com a virada do ano. Mas, de fato, permitimos que ele ganhasse ainda mais força.
Com nossas escolhas e nosso cansaço, no momento em que escrevo este texto, com dados até 25 de fevereiro, os números na minha cidade são os seguintes:
– 56 dias transcorridos desde o início do ano;
– 2.470 casos;
– 89 mortes.
Para comparar, em 2021 vivemos 1/5 (20%) do período de Pandemia de 2020 e já chegamos a cerca 30% do número de casos e mortes.
Em 2021 nós avançamos tudo, começamos a agir como se tudo tivesse magicamente ficado bem. Começamos a discutir o retorno das escolas com muitas pessoas já querendo 100% dos alunos dentro das salas de aula. Eu acredito que repensar a educação é necessário e discutir o retorno é imprescindível, mas não mandaria minhas filhas para aulas presenciais olhando estes números.
Enfim…
Enfim, como eu já havia dito, este texto é um desabafo. Um desabafo de alguém que também já não aguenta mais o isolamento, que muitas vezes precisa sair também por questões de trabalhos. Um desabafo de um pai de família que quer passear com as filhas. Mas, acima de tudo, um desabafo de alguém que olha para os números e não vê algo frio, vê vidas ceifadas e muita responsabilidade nas escolhas que fazemos.
Este não será o fim da humanidade. Passaremos por isso, pelo menos, a maioria de nós passará. Me preocupo com os que não passarão.
Enquanto isso, espero que a gente tome as melhores decisões, que a vacina e a cura cheguem logo e possamos voltar a nos abraçar e viver com maior tranquilidade.
Desejo que você fique bem! E fique em casa, o máximo que você puder.