A fada que roubava sonhos

Publicado por em 14 ago 25. Prosas e Contos
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A fada que roubava sonhos

Algo estava inexplicável estava acontecendo, as pessoas andavam pelas ruas com olhos esbugalhados, murmurando palavras desconexas. O padeiro assava pães queimados; o padre pregava sermões que não faziam sentido; crianças brincavam com arame e vidro como se fossem brinquedos normais. Tudo estava corroído pelo cansaço, pelo sono que nunca vinha.

E, no centro disso, Davi dormia e sonhava.

Ele era um jovem escritor, vinte e poucos anos, com cabelos escuros e olhar curioso. Sempre sensível aos pequenos detalhes da vida, agora percebia o caos da cidade como se estivesse assistindo a um pesadelo coletivo. Durante o dia, os rostos cansados passavam por ele, sem notar que ele conseguia dormir, sem perceber que sua mente permanecia intacta.

Mas à noite, Alletra aparecia.

A primeira vez que a viu foi através do reflexo de sua janela. Uma mulher pequena, mas com presença maior que a própria sala. Pele corada, quase luminosa, cabelos negros como um véu molhado, e olhos que brilhavam com uma fome intensa. Suas asas translúcidas tremiam com o ar, espalhando um pó cintilante que desaparecia em segundos.

— Você sonha bonito, Davi… — disse ela, sua voz doce e quase hipnótica.

Ele se virou, mas ela não estava no quarto. Um arrepio percorreu sua espinha.

Nos dias seguintes, Alletra tornou-se mais ousada. Aparecia nos reflexos, nos cantos escuros, às vezes sentada à beira da cama, inclinando-se para ele. Tocava o ar perto de seu rosto como se brincasse com a vontade dele, provocando, sussurrando frases impossíveis de ignorar:

— Quero provar de cada sonho seu… sentir cada pensamento…

Davi, mesmo fascinado, sentia o perigo. Sentia que algo nela era predatório, mas elegante, perigoso, quase irresistível. Cada encontro era um jogo: a cidade desmoronando, ele intacto, e ela tentando invadi-lo.

Ele começou a experimentar estratégias para resistir: escrevia pensamentos confusos em cadernos, criava devaneios absurdos para distraí-la, mas cada tentativa parecia apenas aguçar a fome de Alletra. Ela ria, passando os dedos pelos livros, inclinando-se sobre ele com um sorriso travesso e perverso:

— Você tenta me enganar… mas ainda me pertence.

A cidade afundava na insônia. Cada vez que Davi dormia, Alletra observava de longe, suas asas batendo lentamente, os olhos dourados fixos nele. Ela desejava o que ele tinha: a pureza do sonho intacto.

Numa noite de chuva fina, ela apareceu na varanda dele, os cabelos grudados à pele, o vestido colado ao corpo. Aproximou-se lentamente, passando a mão pelo braço dele.

— Agora… vamos brincar de verdade — sussurrou, encostando os lábios no ouvido dele, e a respiração quente contrastando com o frio da noite.

Seu corpo se arrepiou.

Davi recuou, mas não conseguiu escapar. Ela era rápida demais, quase flutuava sobre ele. A cidade guardava um silêncio enganado; os corpos vagavam, mas as mentes estavam consumidas.

— Você é… diferente — disse Alletra, sua voz baixa, quase um suspiro. — Não posso te tocar como aos outros, mas quero cada pedaço seu…

inconscientemente, o rapaz fechou os olhos e respirou fundo, sentindo-se envolver pelo aroma de jasmim e mel que emanava dela. Mas não havia ataque, nem fuga: apenas aquele instante interminável, onde a fome dela e a resistência dele se encontravam.

Quando o primeiro raio de sol cortou a cidade, Alletra desapareceu. Mas Davi sabia: ela voltaria. Sempre.

A cidade lentamente começou a se reorganizar, mas algo em Davi havia mudado. Ele agora carregava a presença dela em seus sonhos, um sussurro constante que o acompanhava, doce e aterrorizante ao mesmo tempo. E Alletra, invisível aos olhos de todos, rondava cada rua, cada casa, cada mente. Esperando, desejando, faminta.

Davi ainda podia dormir, ainda podia escrever. Mas a sensação de estar sendo observado, de que a fome dela nunca cessaria, deixava uma certeza silenciosa: nada terminaria bem.

E, à noite, quando o vento soprava pelo quarto, ele podia jurar que ouvia:

— Agora você é meu… Davi.

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