Malhação de Judas

Publicado por em 25 jul 24. Folclore, Prosas e Contos, Textos
Tempo estimado para leitura: 5 minutos

Na remota cidade de Eldorado, escondida do mundo pela distância, o tempo parecia ter parado. Entre as ruas de terra batida e vielas estreitas, muitos causos sobre criaturas encantadas eram contadas e nenhuma mãe deixava seus filhos saírem sozinhos à noite.

Entre tantas coisas estranhas, a cidade ainda mantinha uma tradição antiga e peculiar, no sábado de Aleluia, o sábado que antecede a Páscoa, os moradores se reuniam na praça central para participar da “Malhação do Judas”, em que um boneco de pano representando o traidor de Jesus era espancado pelas crianças da cidade.

Matheus chegou na cidade na manhã do sábado, assim que o sol nasceu. Uma estranha névoa cobria as ruas como um rio fantasmagórico fluindo. O silêncio era inquietante, acentuando a culpa no coração do homem.

Ele caminhou pelas ruas desertas, pensando nos próprios pecados. Como ele podia ter feito aquilo com a mulher que, diante de Deus, jurou amar e proteger? Mas ela tinha provocado, ficava rindo e se engraçando com os machos da vizinhança. Ele não tinha o direito… Mas a culpa era dela… dele…

Seus pensamentos foram interrompidos pelo som de risadas e correria. Em poucos instantes, várias crianças passaram correndo por ele, segurando pedaços de pau, cabos de vassouras, mangueiras e outros itens estranhos. Elas riam, cantarolavam e falavam alto sobre dar uma lição no traidor.

Matheus seguiu a mesma direção das crianças e logo chegou a praça central da cidade. No meio dela, um grande boneco de pano pendia amarrado por uma corda no galho de uma árvore alta, balançando suavemente, como alguém despreocupado com a vida.

Ele assistiu curioso enquanto as crianças formavam um círculo ao redor do boneco. Um a um, elas vendaram os olhos e, com aquilo que traziam em suas mãos, começaram a girar, desorientadas, antes de bater no boneco com toda a força.

Ao mesmo tempo que xingavam o boneco, elas riam entre elas. Era uma visão divertida e assustadora contemplar as crianças se divertindo em meio a tanta violência.

O homem começou a pensar na esposa, em toda a raiva que ele sentia, que ela fez ele sentir.

Os sorrisos maliciosos. Os olhares lascivos. As roupas indiscretas. Ela merecia. MERECIA! Ele não tinha culpa, a culpa era dela. Ele desejou poder colocá-la no lugar daquele boneco. Ela era a traidora. Precisava sofrer. Devia sofrer!

Nesse momento, enquanto seus pensamentos mais odiosos ganhavam forma e as crianças giravam e batiam no boneco, Matheus sentiu uma dor aguda em seu peito. De repente tudo escureceu e ele se sentiu tonto. Seu corpo ficou mole e ele sentiu que desabaria no chão.

Mas algo o segurou.

Ele sentiu um aperto envolvendo seu peito, o segurando por baixo dos seus braços. Aquilo parecia ser… parecia ser uma corda! Quando Matheus recobrou a consciência, percebeu que não estava mais em seu próprio corpo. Ele era o boneco de pano, olhando para o mundo através de olhos de botão. Ele tentou gritar, mas nenhum som saiu de seus lábios costurados.

Antes que sua mente confusa tentasse compreender o que havia acontecido, as pancadas fortes, acompanhada de risos cruéis, tomaram sua atenção. Ele estava impotente diante daquela situação terrível. A cada golpe ele sentia uma dor lancinante. A dor da pancada se somava a dor da impotência e ele sentia como se sua alma se estilhaçasse a cada impacto.

A manhã se arrastou lentamente e, quando enfim as crianças se dispersaram, Matheus percebeu com horror que estava condenado a permanecer naquele estado para sempre. Sem controle da própria vida, entregue aos caprichos e a violência dos outros.

Comente

*
*