Nos trilhos do amor

Publicado por em 20 out 24. Prosas e Contos, Textos
Tempo estimado para leitura: 8 minutos

Parte 1: Outra manhã desastrada

Aquele definitivamente não era o meu dia. Na verdade, Murphy provavelmente estaria tomando café na minha cozinha, dando risada de cada detalhe caótico da minha manhã.

O maravilhoso dia começou com o alarme que não tocou. Ou melhor, tocou, mas eu desliguei no modo zumbi e voltei a sonhar que estava em uma ilha paradisíaca… Acordei atrasada, claro. E o café? Virou uma poça marrom na pia porque, em um golpe ninja de sono, derrubei a cafeteira.

A única camiseta limpa que eu tinha – aquela branquinha, básica e perfeita – decidiu que hoje era dia de tomar banho e foi batizada por uma gota de ketchup enquanto eu tentava comer uma coxinha (é, coxinha às sete da manhã, não me julgue). Enfim, um desastre atrás do outro.

No meio disso tudo, só uma certeza: se eu perdesse aquele trem, meu chefe ia me fuzilar com os olhos assim que eu chegasse no escritório.

Então lá estava eu, correndo feito uma maratonista olímpica para a estação, quando percebi o pior: eu tinha esquecido meu celular.

— Pelo amor de Deus, hoje não, Cecília! — Chorei para mim mesma e fui para a fila da bilheteria comprar uma passagem.

Parte 2: Eu versus o qrCode

Se você já tentou passar o qrCode de uma passagem na catraca, sabe que é um jogo de paciência e sorte. Eu, no entanto, nunca tive sorte.

Escaneei uma vez. Nada. Duas vezes. Nada. Esfreguei o papel na tela…

“Falha de leitura”. Era isso que dizia a maldita tela da catraca, como se eu já não soubesse que minha vida era uma falha naquele momento.

Tentei esticar o papelzinho, limpei o leitor com a manga da blusa, virei o bilhete de cabeça para baixo e tic-tac-tic-tac, a catraca continuava indiferente ao meu desespero crescente.

E foi aí que ele apareceu.

— Quer uma ajuda aí? — disse uma voz tranquila e um tanto divertida.

Eu levantei a cabeça e lá estava ele: alto, com um cabelo meio bagunçado que parecia intencionalmente desarrumado, e um sorriso fácil. Não era exatamente um príncipe encantado… mas, naquele momento, ele era o mais próximo disso que eu poderia pedir.

— Sim, por favor! — respondi, um pouco mais desesperada do que gostaria. Sem dizer mais nada, ele passou um cartão com um leve bip. A catraca fez um som glorioso de liberação e girou.

— Olha, o trem já está na plataforma — ele disse com um sorriso de canto.

Eu nem pensei. Só disparei pela catraca como se precisasse ganhar a maratona da minha vida. Quando me lembrei de me virar para agradecer, ele já estava do meu lado, pronto para embarcar no mesmo trem.

Parte 3: Conversa de coletivo

— Obrigada! Salvou minha pele — eu disse, ainda meio ofegante.

— Não foi nada. Essas catracas são inimigas do trabalhador brasileiro — ele respondeu, rindo.

Eu ri também, já me sentindo um pouco mais leve. Por uma sorte inesperada o trem não estava tão cheio e nos sentamos lado a lado, nos últimos lugares vagos. O trem começou a andar, e eu finalmente pude respirar. Olhei para ele.

— Então… Você sempre ajuda moças desesperadas em estações ou foi só sorte minha hoje?

— Ah, eu sou praticamente um herói anônimo do transporte público, — ele brincou, piscando. — Mas você teve sorte também. Nem sempre estou por aqui nesse horário.

A conversa foi tão natural quanto café e pão de queijo. Descobri que o nome dele era Lucas, que ele trabalhava em uma agência de publicidade, e que, assim como eu, ele vivia travando batalhas épicas contra qrCodes.

— Eu acho que as catracas têm um problema pessoal comigo — ele disse, com a maior seriedade do mundo, e eu gargalhei.

Depois de duas estações e o trem lotado, Lucas se levantou para dar lugar a uma senhora que entrou. Além de tudo, um cavalheiro. Segurei a bolsa dele enquanto continuamos nossa conversa.

Por alguma razão que eu não conseguia explicar, a viagem de trem, que geralmente parecia uma eternidade, passou voando. Falamos sobre tudo e sobre nada, dos nossos filmes favoritos às frustrações da vida adulta, das comidas mais esquisitas que já comemos até nossos sonhos meio absurdos para o futuro. Ele me fez rir tanto que esqueci por alguns instantes que eu ainda estava atrasada.

Final: Separados por… todo mundo

Quando chegamos na Estação da Luz, o trem parou e descemos. Foi aí que me dei conta de que eu não tinha pegado nenhum contado do Lucas, mas antes que eu pudesse pedir o arroba dele no tik tok, de repente, a plataforma foi tomada por um tsunami de pessoas. Aquele caos típico de São Paulo: mochilas, gente correndo, se empurrando e gente perdida. Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, fui empurrada pela multidão.

— Lucas! — chamei, me esforçando para não ser levada pela maré humana. Ele olhou na minha direção e tentou chegar até mim, mas era como nadar contra a correnteza.

— Espera! — ele gritou.

Eu estiquei a mão, tentando alcançá-lo. Mas foi inútil. Em segundos, ele desapareceu no meio da multidão. Eu fiquei ali, parada na plataforma, meio atordoada, olhando ao redor como se ele fosse aparecer a qualquer momento.

Não apareceu.

E, para completar, ouvi meu celular tocar. Na verdade, eu não tinha esquecido ele, só estava entocado no fundo da minha mochila. Quando peguei ele, uma mensagem do meu chefe pulou no meu whatsapp: “Está a caminho?”

Claro que estava. Só mais uma segunda-feira caótica na minha vida.

Eu passei o resto do dia com aquela sensação de que algo importante tinha acabado de escapar por entre meus dedos. Como um desses encontros que o universo planeja cuidadosamente, só para rir da nossa cara depois.

Será que eu devia ter insistido mais? Será que devia ter pedido o número dele no trem? Ou talvez anotado o nome da agência onde ele trabalhava? A verdade é que, na pressa e na confusão, não trocamos contatos. Era como se nossa conexão fosse tão rápida quanto o próprio trem: algo que passou e não voltou mais.

Mas, lá no fundo, eu sorria sozinha. Porque, mesmo que a vida fosse um caos e as catracas continuassem não colaborando, havia algo de reconfortante em saber que pessoas como Lucas existiam. E quem sabe, talvez o universo resolvesse nos colocar no mesmo trem de novo algum dia.

Enquanto isso, eu continuei a travar minha luta diária contra qrCodes. Mas agora, pelo menos, com um motivo a mais para sorrir.

Comente

*
*