— Mas e então, como foi que vocês dois se conheceram?
Letícia e Felipe se olharam com o olhar de cumplicidade tão comum dos dois. Então Felipe se curvou sobre a mesa, se aproximando do outro casal e disse num tom baixo, quase como quem conta um segredo:
— Vocês não vão acreditar…
— Vocês precisam manter a mente aberta e ouvir a história até o final, tá bom? — Letícia completou.
Arthur e Cristina se olharam com cara de dúvida e riram. Depois de 2 horas naquela mesa de bar, a bebida ajudaria a, pelo menos, aceitar qualquer história.
Felipe então começou a contar:
Eu sofri demais na escola. Eu tinha as orelhas um pouco grandes e sabe como é a molecada, não perdoavam. Eu tive todo tipo de apelido: Dumbo, abanador, orelha de avião… isso para citar os mais leves. Era horrível.
Quando eu comecei a trabalhar, aos 17 anos, eu fiz uma promessa para mim mesmo, de que em todo salário que eu ganhasse, uma parte seria guardada para eu fazer uma cirurgia plástica para mudar o formato das minhas orelhas.
Foi um processo super complicado, posso dizer que uma verdadeira saga. Eu guardei todo o dinheiro possível, minha família ajudou e, quando eu completei 25 anos, eu tinha os 20 mil reais que eu precisava para fazer minha operação. O valor era dividido entre o pagamento do cirurgião e da viagem, já que o médico que eu havia escolhido era de outro estado e eu pretendia aproveitar e passar alguns dias curtindo as praias do nordeste.
Eu me senti realizado, foi uma verdadeira vitória! Depois de tanto tempo eu enfim realizaria um sonho. Para muita gente poderia parecer algo bobo ou superficial, mas para mim era uma verdadeira mudança de vida.
Eu já tinha estudado tudo sobre otoplastia. O pós operatório correu como esperado. Seis meses depois, as orelhas já estavam quase totalmente desinchadas e eu me sentia um novo homem. Era como se seu tivesse me libertado de algo que me aprisionava.
Então, um ano depois da operação eu troquei de emprego e passei a trabalhar como secretário em um escritório de advocacia. O trabalho e o salário eram bons e o clima no escritório era muito agradável. Havia apenas uma coisa que me incomodava: eu saía do trabalho um pouco depois de escurecer e, para chegar ao ponto de ônibus, precisava passar em frente a um cemitério.
Eu nunca fui um cara supersticioso, mas passar na frente de um cemitério a noite era um pouco demais para mim. Mas enfim, eu precisava trabalhar e também precisava pegar o ônibus para ir para casa.
Aconteceu que, numa sexta-feira, eu acabei ficando enrolado com a organização e arquivamento de uma papelada. Acabei ficando sozinho no escritório até tarde e, quando terminei o trabalho, já eram mais de dez horas da noite. Juntei minhas coisas e saí.
O caminho até o ponto de ônibus era naturalmente deserto, mas naquele horário eu não ouvia o som de ninguém pela região. Parecia que eu estava num outro mundo.
Fui passando pela frente do cemitério quando ouvi o latido de cachorros. Tomei o maior susto! Era só o que me faltava, ser mordido por cachorros numa hora daquelas e na frente de um cemitério. Apertei o passo.
Quando estava passando próximo ao portão, escutei um latido diferente. Era um som mais grosso, um tanto assustador.
Em seguida, os latidos se tornaram grunhidos e sons assustadores. Eu ouvia barulho de briga e dos cachorros fugindo. De repente ouvi um uivo muito alto e então vi, surgindo por cima do muro do cemitério, um cachorro enorme e desengonçado. Tinha as patas dianteiras compridas como braços. Seu focinho parecia estranhamente anormal, como se tivesse o tamanho ou o formato errado.
O bicho pulou na minha direção e, quando ele caiu no chão, a alguns metros de mim, pude ver que era muito maior do que eu tinha imaginado. Os pelos arrepiados pareciam sujos de sangue. Meu corpo congelou. Minha mente tentava entender que bicho era aquele, buscando na memória algo parecido. Antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo ou mesmo pensar em qualquer coisa, a fera pulou em cima de mim.
Ouvi o som da minha camisa sendo rasgada e senti uma dor aguda na barriga. A criatura havia enfiado uma de suas unhas em mim. Em seguida, ela puxou um pedaço de minha carne e comeu diante dos meus olhos aterrorizados.
A fera era enorme, pesada e muito forte e eu mal conseguia me mexer. Ver ela mastigando um pedaço meu era horrível, mas eu não conseguia nem ao menos gritar. Eu estava congelado de tanto medo.
O bicho aproximou sua boca do meu rosto. Sua respiração quente contrastava com o frio da noite. Mas aquele ar quente e fedorento parecia que iria congelar minha alma. Ele então mordeu minha orelha, enquanto sua garra ainda se revirava em minha barriga. A dor era lacerante.
Neste momento só consegui pensar em uma única coisa: os 20 mil reais que eu tinha juntado por tanto tempo para que minhas orelhas ficassem como eu queria. Eu poderia até morrer de um modo horrível, atacado por um monstro saído do inferno, mas eu jamais aceitaria morrer com minha orelha feia.
Uma raiva infinita tomou conta de mim e me fez perder o controle, quase como se não fosse mais eu quem controlava meu próprio corpo. Agarrei o monstro pelo pescoço e o afastei da minha orelha, com a outra mão segurei sua garra que estava na minha barriga e a torci. Consegui então empurrá-lo e sair do chão.
Acredito que ele não esperava ser atacado, provavelmente isso nunca deveria ter acontecido. Ele estava parado me olhando, e dessa vez fui eu quem avancei em sua direção. O joguei no chão e comecei a esmurrar o bicho repetindo: “Não toque na minha orelha! Não toque na minha orelha!“.
Quando recobrei o controle, eu estava exausto, minhas mãos estavam ensanguentadas e doíam muito, afinal eu não estava acostumado a bater em ninguém, muito menos em um lobisomem.
O lobisomem estava desmaiado com muito sangue escorrendo de seu focinho.
Me levantei e fui me afastando devagar como se agora eu pudesse entender o qual insano era tudo aquilo e foi neste momento que aconteceu.
O corpo do monstro começou a se transformar. Eu ouvia estalos enquanto seu corpo se contorcia. A criatura, antes tão horrível e ameaçadora, ganhava curvas e a beleza de uma jovem mulher. O lobisomem era a Letícia!
Nessa hora Letícia interrompeu, enquanto abraçava apertadamente o Felipe e beijava seu rosto:
— Como todo mundo sabe, o único jeito de quebrar a maldição de um lobisomem é sendo corajoso o suficiente para fazer ele sangrar com as próprias mãos! Meu príncipe encantado me desencantou!
Felipe sorriu, um pouco envergonhado e continuou contando a história:
Quando eu vi aquela garota linda, nua, jogada no chão com o rosto sangrando, pensei na hora em levá-la para o médico. Mas assim que a peguei em meus braços pensei que seria difícil explicar o que tinha acontecido com ela, principalmente porque eu também estava todo machucado e cheio do sangue dela.
Carreguei-a no colo de volta para o escritório. Fiz um curativo na minha barriga e cuidei dela o melhor possível naquela noite. No sábado pela manhã, quando ela acordou, conversamos bastante. Ela falou de toda a sina de se transformar em um monstro, contando que quando ela estava transformada parecia que estava em um sonho e não tinha controle do que fazia, mas se lembrava de tudo.
Saí e comprei roupas e medicação para ela e para mim, depois fomos para a minha casa e nunca mais nos separamos.
Arthur e Cristina olhavam para Felipe, olhavam para Letícia, se entreolhavam e olhavam para os copos sem saber o que dizer.
— Vocês estão nos zoando, não é? — Cristina perguntou começando a rir.
Letícia e Felipe continuaram sérios e apenas se beijaram.
— Nossa gente, como está tarde. Vamos precisar ir. — Arthur disse, visivelmente assustado, enquanto puxava Cristina pelo braço — Vamos amor! Tchau gente.
— Nos vemos na segunda no escritório! — Letícia sorriu se despedindo.
Felipe e Letícia ficaram sozinhos bebendo mais um pouco e conversando.
— Você acha que eu deveria ter contado a história verdadeira de como nos conhecemos, Lê?
— Acho que não. Quem iria acreditar que você foi salvo por uma sereia depois de ir nadar bêbado a noite?