O Encourado de São Matias das Águas

Publicado por em 07 set 24. Folclore, Prosas e Contos, Textos
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Os dias no sertão de São Matias das Águas sempre foram de sol ardente e o chão rachado, mas as noites… ah, as noites eram cheias de mistério. Eu lembro como se fosse ontem, apesar dos anos que passaram, das noites escuras e silenciosas que faziam os cabelos da nuca se arrepiarem. Era como se a própria terra respirasse um medo antigo, esperando algo emergir da escuridão.

Eu era jovem, ainda com a força nos braços e os olhos cheios de sonhos, quando cheguei a São Matias. Um forasteiro, em busca de trabalho e uma vida simples. O senhor Anselmo, um bom homem, me ofereceu um canto para dormir e trabalho duro, e eu aceitei de bom grado.

Poucos dias após eu chegar na cidade, comecei a perceber que havia algo de estranho. As pessoas pareciam sempre assustadas.

— Aconteceu de novo, seu Anselmo? — ouvi uma das mulheres do mercado perguntar ao patrão, enquanto eu comprava suprimentos.

— Sim — ele respondeu com um suspiro. — Três vacas já sumiram sem deixar rastro. E a filha do João não voltou para casa.

Me lembro de parar para ouvir a conversa. Eu já tinha escutado histórias sobre gado desaparecendo misteriosamente, mas uma pessoa? Aquilo era novo.

Naquela noite a lua não quis aparecer e, quando eu me preparava para dormir na minha pequena cabana, ouvi pela primeira vez o sussurro que cortava o silêncio. Um som estranho, como um assobio que vinha de lugar nenhum, mas parecia que estava em toda parte. Saí da cabana, com o coração martelando no peito, e vi uma figura à distância, montada num cavalo negro, coberta de couro da cabeça aos pés, com um chapéu largo que escondia seu rosto. O Encourado.

Eu não precisava ver os olhos do estranho para sentir o peso do seu olhar sobre mim. Naquele instante, senti como se o tempo tivesse parado, e o medo congelou meu sangue. Senti um frio subir pela minha espinha e, de repente, as histórias da minha infância voltaram todas à minha mente.

Eu sabia quem ele era. A história que ouvi quando menino, sobre o fazendeiro que fez um pacto sombrio para proteger suas terras, ganhava vida diante de mim. Ele não era apenas uma lenda, era real. Um vampiro, uma criatura da noite, condenada a vagar pelo sertão, sugando a vida dos animais e, às vezes, das pessoas.

Na manhã seguinte fui falar com o senhor Anselmo.

— Isso são só histórias, garoto. Não deixe que essas bobagens que o povo daqui fala entrem na sua cabeça.

Mas eu sabia o que eu tinha visto e decidi encontrar respostas por conta própria. Procurei informações com as pessoas da fazenda e da cidade, mas ninguém queria nem mesmo falar sobre o assunto. Especialmente com um forasteiro.

Foi aí que conheci a Irmã Alma…

Ah, Alma. Tão pequena em tamanho e tão grande em coragem.

Ela era uma jovem freira, com uma sabedoria que vinha de gerações. Conhecia as histórias do sertão e os segredos que os antigos guardavam a sete chaves. Quando contei o que vi, seus olhos brilharam com algo que eu não soube definir se era medo ou empolgação.

— O Encourado não é só uma lenda — ela me disse, enquanto a luz da lamparina iluminava seus grandes olhos castanhos através dos óculos redondos e engraçados. — Ele era um fazendeiro poderoso, que fez um pacto para proteger suas terras. Mas o preço foi alto: ele se transformou em uma criatura da noite, condenada a vagar pelas sombras, sem nunca encontrar descanso.

A jovem freira havia chegado no povoado poucas semanas antes de mim, seguindo o rastro da criatura. Apesar de sua aparência frágil, Alma era decidida e parecia saber exatamente o que estava procurando e como agir.


Na noite seguinte, partimos juntos para a velha fazenda abandonada, o lugar onde, segundo as investigações da Irmã Alma, o Encourado selou seu destino. Lembro-me da lua cheia iluminando nosso caminho, as sombras das árvores dançando ao nosso redor, como se o próprio sertão nos conduzisse por aquele caminho macabro.

A fazenda estava em ruínas. O ar frio da noite era pesado e, a cada passo, eu sentia como se a terra quisesse nos afundar nela. Após alguns minutos de caminhada, chegamos em uma casa velha e abandonada, onde nos deparamos com uma pequena porta que levava a um porão. O cheiro de mofo e morte que exalava do lugar me encheu de nojo e medo. Era difícil respirar e eu sentia meu coração tentando sair do meu peito, batendo acelerado.

Ao chegar lá embaixo, encontramos um altar antigo. Símbolos estranhos e ossos de animais… Só poderia ser o lugar onde ele fez o pacto.

Enquanto investigávamos o lugar, Irmã Alma parecia procurar por alguma coisa específica.

— O que estamos procurando, Irmã? — perguntei.

— Quando eu encontrar, vou saber… — Alma respondeu distraída com uma pilha de livros velhos.

Foi então que um frio terrível tomou conta do lugar e o Encourado apareceu caminhando lentamente do meio da escuridão em nossa direção, seus olhos brilhavam como brasas no escuro.

Ele parou bem próximo ao estranho altar e soltou uma gargalhada tenebrosa

Eu me coloquei entre Alma e a criatura, segurando um pedaço de madeira, como se aquilo pudesse nos proteger. Mas a verdadeira coragem estava nas mãos da freira. Ela acendeu uma vela do altar, e começou a murmurar uma oração antiga, uma oração realmente poderosa.

A criatura avançou, mas algo na luz da vela o fez hesitar. Aproveitei a oportunidade, empurrando-o para trás, enquanto Irmã Alma continuava a entoar sua oração.

Em uma luta feroz o Encourado tentava avançar na direção de Alma e eu, com todas as forças tentava detê-lo. A criatura era muito forte, mas parecia que o brilho da vela o fazia perder as forças cada vez mais.

A freira ergueu os braços, fazendo o brilho da vela bilhar ainda mais forte, ao mesmo tempo em que ele me agarrou pelo pescoço, me levantando do chão. Agarrei seu braço, enquanto sufocava. Eu daria o máximo de tempo para Alma, mesmo que isso custasse minha vida.

Foi então que ela encontrou o relicário, um objeto antigo, selado com sangue e cera. Quando ela o quebrou, o cheiro de podridão tomou conta do porão.

A criatura gritou me lançando longe, mas antes que ele pudesse atacar a freira, Irmã Alma pisou no pedaço de osso que estava no relicário, desintegrando o Encourado em poeira e sombras.

O silêncio que se seguiu foi como se a própria noite tivesse soltado um suspiro de alívio.

Quando voltamos à cidade, ninguém sabia o que realmente aconteceu naquela noite e Alma me pediu para não contar nada para ninguém. Mas todos sentiram que algo havia mudado. O medo que pairava sobre São Matias das Águas começou a se dissipar, e a vida voltou ao normal, tanto quanto podia ser.

Fiquei na cidade. Trabalhei na fazenda do senhor Anselmo e vez ou outra recebia uma carta da minha nova amiga, a Irmã Alma. Ah, como ela tinha coragem e sabedoria! Pelo que soube, ela fazia parte de uma ordem religiosa cuja função era enfrentar outras sombras, outras lendas que ainda espreitavam nas noites do Brasil profundo.

E assim, meus netos, é como eu lembro daquela noite. Uma noite que provou que o verdadeiro poder não está na força, mas na coragem de enfrentar o que nos assombra, mesmo quando a escuridão parece interminável.

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